domingo, 5 de junho de 2011

A origem das festas juninas

Celebrações dos povos primitivos em agradecimento pela boa colheita deram início à tradição

Por Maria Angélica Ferrasoli (*)

Você dá o braço a sua parceira de quadrilha e vê nela a deusa Juno. Rodopia um pouco e lá estão povos primitivos como os celtas dançando em volta de uma árvore enfeitada, qual mastro de São João. O casamenteiro Antônio parece indeciso entre uma boa pamonha e a apetitosa sardinha assada à portuguesa, com certeza. É, você ainda nem chegou perto do quentão, mas o mundo todo parece estar ali, infinitamente pequeno e próximo, com múltiplas épocas e culturas entrelaçadas nos passos da dança. Tudo isso – e muito mais – faz parte da festa junina.
Embora hoje nas grandes cidades as comemorações de junho muitas vezes se limitem a uma ou outra quermesse, não raro embaladas pela música da moda, a história dessas festas, originalmente pagãs e depois adaptadas pelo cristianismo, é quase tão saborosa quanto sua gastronomia. Tentar desvendar o novelo que leva até seu início proporciona uma verdadeira viagem no tempo: o ponto de partida é o remoto momento em que o homem agradece aos deuses a fertilidade da terra e a boa colheita, louvando-os para que a fartura prossiga e oferecendo, em troca, suas oferendas. Ao redor da fogueira, como continuaria a fazer milhares de anos depois, dançava.
O que junho tem a ver com isso? “O mês coincide com a época da colheita no Hemisfério Norte, que lá é justamente entre o final da primavera e início do verão”, explica o jornalista Carlos Felipe Melo Marques Horta, professor da PUC-MG e autor de vários livros sobre folclore, entre eles Quadrilha: Teatro, Poema e Dança, que aborda o tema das festas juninas e integra iniciativa de sucesso para revitalização destas tradições em conjunto com a prefeitura de Belo Horizonte. Foi no império romano, porém, que as festas da fertilidade passaram a se chamar Junônias, em homenagem à toda-poderosa deusa Juno (Hera, mitologia grega), celebrada em junho. Mulher de Júpiter, Juno é o símbolo máximo do amor conjugal, da fidelidade e, não por coincidência, da fertilidade.
Esclarecidas as visões da deusa a seu lado e dos alegres celtas, restam os santos. Eles entram em cena com a expansão do cristianismo na Europa e sua missão de erradicar tradições pagãs milenares, substituindo a cultura plural de deuses pela monoteísta. Muitos rituais, porém, são incorporados à fé cristã. As Junônias permanecem, adaptadas. Já não se celebra Juno pela boa colheita, mas alguns dos santos cristãos relacionados ao mês, seja pela data de morte ou associação similar (29 de junho, por exemplo, dia de São Pedro e São Paulo, teria sido escolhido por ser o antigo dia da festa de Rômulo e Remo, considerados fundadores de Roma). Com a veneração aos santos, surgem atribuições específicas, como a do casamenteiro Antônio; Pedro, protetor dos pescadores e das viúvas (era filho de uma), e João, primo de Cristo, cuja festança no Brasil é a grande atração turística de cidades nordestinas como Caruaru, Campina Grande e Petrolina, entre muitas outras.
“Santo Antônio certa vez teria intercedido numa briga de casais e salvado o casamento. Vem daí sua fama. Já São Pedro, além dos pescadores, protege os lares”, explica frei Severino, do convento de São Francisco, em São Paulo. O frei, que passou anos de seminário no Sul, lembra que na região celebra-se também São Paulo (assim como Pedro, um dos pilares da igreja católica), e que, durante as festas de São João, ele e outros seminaristas caminhavam descalços sobre as brasas da fogueira. “Assim como algumas tradições permanecem sem que saibamos o motivo que as originou, também não existe uma explicação científica para a fé”, ressalta.
As pistas, porém, vêm de diferentes caminhos, e surpreendem pela simplicidade. A fogueira e o mastro que caracterizam o São João, por exemplo, teriam origem em seu nascimento, quando Isabel, sua mãe, os utilizou para anunciar a chegada do filho à prima Maria, grávida de Jesus. Sua doce culinária, à base de mel, também tem segredos a degustar. “Utiliza-se muito o mel pelo fato de São João ter se alimentado quase que exclusivamente dele no deserto, quando foi meditar sobre sua conversão”, aponta Hamilton Mellão Jr, hoteleiro, especialista em gastronomia e proprietário do restaurante I Vitelloni, em São Paulo. Ainda sobre as ‘características’ de cada santo, o crítico sugere outras possibilidades, lembrando o primeiro Concílio de Trento (aberto em 1545, para fazer frente à Reforma Protestante) que, de certa forma, resolveu “atribuir qualidades a cada um dos santos, para que durante todos os dias do ano os católicos tivessem bons exemplos a seguir”.
Um imenso Portugal - Um dia, enfim, as festas juninas desembarcaram por aqui, trazidas pelas naus portuguesas. Assim como no Brasil, junho em Lisboa se transforma numa grande comemoração, com a diferença de que, lá, a celebração é ainda maior, sendo tão esperada quanto nosso Carnaval. Como acontece também regionalmente em terras brasileiras, mudam igualmente os quitutes – sardinhas e vinho tinto em lugar de pinhão, pamonha e quentão. “Foram inclusive os portugueses que trouxeram para as festas juninas a celebração de Santo Antônio, depois do século 14. É o santo que a tudo atende, e a devoção que o povo português tem a ele é enorme”, explica o folclorista Horta. Nesse caldo cultural mais denso que canjica, floresceram os cantos de junho, os rituais como o da lavagem dos santos, as crendices e as muitas simpatias, boa parte delas dedicada ao encontro do amor e à conquista do casamento.
É também com a Corte Real portuguesa, associada à chegada de missões francesas ao país, que surge o principal tempero da boa festa junina: a quadrilha. O que se sabe sobre ela com certeza é a origem européia (nas Ilhas Britânicas), onde era praticada como dança de salão. Agora que pelo menos parte do mistério das noites de junho foi desvendado, não deixe por menos. Já que a gente não pode mais ter a beleza dos balões no céu, quase não consegue ver as estrelas por causa da poluição e ainda tem de agüentar quermesse embalada por música de má qualidade, rapte sua Juno para a beira da fogueira mais próxima, saboreie seu merecido quentão e aproveite a festa que trata do amor e da fecundidade. Se precisar, apele para Santo Antônio.

(*) matéria publicada na Revista dos Bancários em 2001, com reedição da autora)

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