Poemas do Tempo

(*) Os poemas desta página, salvo exceções creditadas,

são de Maria Angélica Ferrasoli, com registro na Biblioteca Nacional.

 









O homem centenário

O homem centenário é novidade em minha vida
Jamais estive tão perto de um
Olho com curiosidade, espreito
Surpreende-me a ausência de rugas
Pouquíssimos vincos na pele muito clara
Vermelho vivo no risco posterior dos cílios
Ele não sorri, não chora. Não sou novidade alguma em sua vida
Espera, ele sabe esperar
É quando as vozes das conversas refluem
Quando a página do cotidiano vai ser virada na mesa
Nesse momento o homem fala
- Quantas histórias temos aqui. Todos temos histórias. Cada um tem uma história....
Volto os olhos ao seu olhar, nada mudou, não se percebe nova expressão
Mas teimosamente não ouve os conselhos para ir se deitar
Ignora, por surdez ou determinado propósito, a ideia de adormecer
O homem centenário quer calor humano nessa noite de sábado
Recompor a família perdida, os anos de amigos em casa
Quer também contar sua história, resumida em poucas frases repetidas:
- Fui pedreiro, criei um novo jeito de acertar o muro de pedras sem que caísse.
Alguém lembra a ele da guerra, não faz caso
As batalhas já se foram há muito tempo, restou a glória do elogio
O muro que não caiu
Atravessou o século valorosamente guardado em seu coração
Quantas memórias fazem uma vida?
Qual delas, na areia seletiva do esquecimento, reinará em nós até o final?
O homem centenário pouco deve ter dormido naquela noite
Em que trabalhou a criar caminhos entre meu mundo e o seu
E eu, tão longe da solidez das pedras com que calçou o tempo
Relevei conceitos, ideologias, fórmulas, fronteiras
Para atravessar a iluminada ponte rumo ao reconhecimento da condição humana
A condição primeira
Única e inteira.








Bahia irmã

Vejo a Baía de Todos os Santos
E também de Jorge Amado
Que santo não foi
Mas será sempre divino

Não vejo a Bahia negra dos pobres
Moças donzelas nas cozinhas iluminadas por candeias
A sedutora malandragem de Vadinho
Nada vejo além do mar, o mar imenso
Águas de sonho em longo curso
Singradas por capitães da areia

Do mirante, paraíso equivocado (mas paraíso)
Vejo luzes fartas, ouço vozes em línguas estrangeiras
E há a noite também imensa
Nela o cheiro doce e quente que incendeia

Bahia mística, Bahia física
Bahia sensorial
Bahia, quem sabe um dia, para todos
Igual riqueza a desfrutar tua beleza
E um só, único Carnaval










Granada
Para o poeta Federico García Lorca
Há uma coroa de diamantes no céu de Granada
Constelação desconhecida de astrônomos
Exposta a todos quantos sonham um mundo melhor, como um dia o fez o poeta
Neste círculo de luzes noturnas vivem os povos ciganos
Guardiões sem-tempo da grande fortaleza de Alhambra
Terra de árabes e reis cristãos
Beleza moldada pelas mãos dos homens 
Intocável sob as muitas luas
Até aquela marcada pela cruz do infiel
Ali califas e reis beberam o vinho do poder e da invencibilidade
Adornados pela luz magnífica dos vitrais e o céu esculpido de estrelas
Até que a natureza veio lhes mostrar o mesmo destino
E então poucos puderam resistir
Se em Granada há um menino morto
Há outro que, como os ciganos e a fortaleza secular,
Não se cala nem pode esquecer
É Federico García Lorca, poeta assassinado na longa noite escura que se abateu sobre a Espanha
Lorca cujo corpo jamais foi encontrado
Mas por quem todos os sinos clamam e toda terra arde,
Todos os dias de todo o tempo,
A las cinco em punto de la tarde

 

 

 

Montagem


Trinta anos
Eu tinha quase 14
Você mais de 50
Ela, 45
Dois mais que tenho
Nessa equação matemática
Voou o tempo e o meu país
Veio o melhor e o que eu não quis
Vieram outros,
Outras de mim
Há 30 anos neste salão
Vozes iradas, braços cruzados, greve e tensão
E um outro dia
Era Carnaval
Cor na retina, ar serpentina
Eu tão menina
Mão-proteção
Já tanto foi
Tanto mudou.
Restaram esses velhos operários
Que me olham com respeito e curiosidade
Senhores da história
Para onde convergimos todos
Há 30 anos, neste salão


12 maio 2008
São Bernardo/Metalúrgicos do ABC










 

 

Viagem


Meu tataravô veio de longe
A bordo do San Martino
Trouxe mulher, filhos, primos
E meu avô, quase um menino

Minha bisavó me deu seu nome
Desmembrado em variações
Angela, Angelina, Angélica
Anjos de outras gerações

Siamo quase tutti oriundi
Mas não a abuelita
Sangue hispano misturado
Revolución, catso e una chicca vestida de chita

Filomena, Joaquina, Ângela, Apparecida e Encarnación
Camponesas, criadas, servas, senhoras do seu tempo
Se memória pouca há
Restam-me séculos de encantamento

Penso nas videiras carregadas de roxo no Sul italiano,
Nas mãos enregeladas onde o mesmo sangue corria
O rebanho de ovelhas guiado por Domenico
E a sensação entre memória ou nostalgia

Ao norte, naquela terra diferente,
Indago a origem dos Ferazzoli de Canara
Se ferreiros fomos, ou fértil solo,
Se fortes somos, quantos seremos?

E depois, a grande viagem pelo mar
Noites sob estrelas do Atlântico
Uma brisa viva cujo toque sinto
Vidas entrelaçadas a formar o labirinto

Para onde foram, quem eram?
Domenico, sei, seguiu Maria Amália, aqui não quis ficar
Outro era seu destino além-mar
Mas Francesco cresceu e com ele a promessa: voltar

Giustiniano Ferazzoli fincou pé com a turra ancestral
Arou terra de fazenda, de barro e tijolo calçou a estação da Luz
Montou lombo de burro e aumentou família, teve filho brasileiro
Ao fim da vida, encarou forno como o bisneto, mas doutra espécie, padeiro

Dele veio Antônio, o primeiro, contadino ítalo-brasileiro
Mais de dez filhos criados na força de seu arado
Analfabetos e sábios, olhos azuis nas crianças:
Herança de Occhiobello tornada lembrança

Os olhos azuis de Luiz seduziriam qualquer moça bonita
Quanto mais a brejeira abuelita.....
Então – era 1925 – chegou ao mundo o mirrado Antoninho
Seus olhos escuros, aposto, já eram então duas chispas

Longe dali, num pé de goiaba qualquer de Cajobi
A boneca Neca encantava Francesco, o nonno do Sul
Sorria o riso de bochechas coradas, fazia arte e fugia
Quem disse a ele que na testa se escrevia caracu?

Passou muito tempo até que o neto do primeiro Antônio
Deixou a terra, a ferrovia, e foi tentar trabalho na grande indústria
Conhecer novas formas de exploração na cidade,
Aprender a luta contra o patrão capitalista. Comunista!

Fascinado ficou por Prestes, cavaleiro da esperança
Na confusão daqueles tempos, incluiu no pacote Kennedy e Vargas
Trabalhadores do Brasil, tão bonito.... Só muito depois saberia:
Já se armavam ali outras formas de poder, mais amargas

Mas a ferrovia que o levou ao forno da montadora
Trouxe também a moça Neca-Maria por seus trilhos de ir e vir
Operária, copeira, costureira, fazedora de doces, tantas artes tinha
Aos olhos do comunista, nada de dividir: Mariazinha, só minha

E aí cheguei eu e vim fazendo outra história
Mais mineira, brasileira, meio sem eira nem beira
Puxando os fios desse balanço que dança ao redor do tempo
Buscando nem sei o quê, mas sim por quê

Porque a vida é tanta, mas se tem tão pouco do que já foi
Porque o conhecimento sempre nos surpreende e nos falta
Porque escrever não é só registrar, mas retroceder, avançar
E para que um dia, aqueles que não verei nunca me possam alcançar

Assim continuaremos todos a dançar ao redor do tempo
Velozes como o brilhar das estrelas do Atlântico que viu Giustiniano
Ferozes como o arado de Antônio na terra; audazes como quem nunca se cansou de denunciar o que nos explora
Assim seremos todos dançarinos.
Parceiros e companheiros no mesmo destino.

(junho 2004